Sobre circunstâncias fabricadas: o eco vazio de um país inflado

Aprovou-se, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei Complementar 177/2023, que aumenta de 513 para 531 o número de parlamentares.
Sobre circunstâncias fabricadas: o eco vazio de um país inflado
Aprovou-se, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei Complementar 177/2023, que aumenta de 513 para 531 o número de parlamentares (Foto: Divulgação)

“Eu sou eu e minhas circunstâncias”, disse, certa vez, Ortega y Gasset, filósofo, ensaísta, jornalista e ativista político espanhol, fundador da Escola de Madrid, em uma dialética indócil sobre a existência humana. E, por esse fio tênue entre o ser e o mundo, somos chamados à responsabilidade de compreendermos o tempo em que vivemos. Não como espectadores distraídos, mas como sujeitos entrelaçados à tessitura das decisões que nos afetam. No Brasil contemporâneo, no entanto, as circunstâncias parecem ser manufaturadas em gabinetes estanques, alheias à respiração real das ruas.

Aprovou-se, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei Complementar 177/2023, que aumenta de 513 para 531 o número de parlamentares. Um acréscimo de 18 cadeiras, disfarçado sob o véu de um argumento técnico: a proporcionalidade populacional. Mas por trás do cálculo aritmético, o que se revela é uma engenharia de interesses. A matemática política, como bem sabem os que a dominam, tem seu próprio vocabulário — em que “representatividade” pode ser sinônimo de expansão orçamentária, e “ajuste” soa como um eufemismo para gasto desnecessário.

O custo estimado da medida ultrapassa os R$ 64 milhões por ano. Num país que ainda tenta equilibrar-se em suas fragilidades fiscais, cujas próprias autoridades – leia-se o governo – já reconhecem a escassez de recursos para 2027, o gesto é quase uma alegoria do descompasso: mais espaço para discursos, menos chão para a realidade.

É curioso observar como a filosofia de Ortega y Gasset, construída como um chamado à transformação consciente do mundo, seja agora invertida, como se o homem público pudesse se moldar às conveniências de sua própria circunstância forjada. “Eu sou eu e minhas circunstâncias” não é um salvo-conduto para o imobilismo. É, antes, um convite à responsabilidade ativa de quem entende que seu lugar no mundo só faz sentido se busca melhorar o ambiente ao seu redor.

Mas os ventos que sopram de Brasília não avivam para os que esperam mudança. O escândalo do INSS, por exemplo — que envolve descontos ilegais estimados em R$ 6,3 bilhões de aposentados entre 2019 e 2024 — parece ter se dissolvido no silêncio conveniente das instituições. A Controladoria-Geral da União e a Polícia Federal apontam os indícios. Mas o Supremo emudece, o Congresso se desvia e a ideia de uma CPI, que poderia iluminar as sombras desse assalto aos vulneráveis, esbarra em obstáculos invisíveis. O interesse público é substituído por acordos tácitos.

E assim, em vez de se enfrentar o passado recente com a coragem da apuração, opta-se pela ampliação das fileiras parlamentares, como quem redesenha o mobiliário de uma casa em ruínas — polindo o supérfluo, ignorando as rachaduras.

O Senado ainda pode reverter a decisão, e deveria ser capaz de escapar à lógica que o tem reduzido a chanceler de conveniências. Uma resposta diligente de resgatasse à dignidade de um poder moderador. O tempo dirá? Ou confirmará o que já se antevê?

Enquanto isso, o povo observa. E se afasta. A cada eleição, mais abstenções, mais votos brancos, mais silêncio. Não por desinteresse, mas por cansaço. Não por ignorância, mas por desilusão. A política, que deveria ser o instrumento da esperança, transforma-se no espelho de sua própria vaidade.

Ortega y Gasset nos lembrava: o indivíduo é ele e o mundo que o cerca. Mas no Brasil de agora, parece que o universo público se constrói à revelia do homem comum. As circunstâncias se multiplicam — mas os cidadãos, esses diminuem. Não em número, mas em fé.

Por Vinícius Bogéa, Jornalista e escritor – membro da Academia Ludovicense de Letras e Academia Maranhense de Cultura Jurídica Social e Política.